Coluna Palavra e Vida com o padre Amarildo Luciano – Teoria do Método Teológico
14 de julho de 2021Neste artigo eu vou apresentar a minha compreensão da obra Teoria do Método Teológico do renomado teólogo Clodovis Boff.
Clodovis Boff é sacerdote e religioso da Ordem dos Servos de Maria (OSM), filósofo e teólogo, professor em vários centros de estudos teológicos no Brasil e no exterior. Reside atualmente na periferia da cidade de Rio Branco, capital do Estado do Acre, no Norte do Brasil, onde colabora na formação inicial da sua Ordem Religiosa e na pastoral social.
A obra Teoria do Método Teológico, de Clodovis Boff, é uma espécie de gramática de teologia aonde o teólogo/estudante pode recorrer sempre que quiser rever os fundamentos do estudo da teologia. É uma obra completa, no sentido de que aborda todas as possibilidades e métodos, desde os clássicos até os mais atuais doutores nas ciências teológicas. Está organizada em duas partes longas com conteúdo esmiuçado pedagogicamente para que o estudante possa avançar na investigação teológica seguindo critérios muito bem definidos. Na primeira parte, Boff trata das questões nucleares e na segunda parte, das questões complementares.
A primeira parte está dividida em três grandes seções: fundamentos, processos e articulações. Nessas seções o autor explica detalhadamente o processo do nascimento e do desenvolvimento da teologia como exercício da razão procurando as razões da fé. É de propósito a repetição: razão das razões da fé. A fé é o pressuposto da ciência teológica. A teologia é uma ciência que tem uma racionalidade sui generis, uma racionalidade própria. É um conhecimento científico num grau mais elevado que se alcança com o auxílio da graça do Espírito Santo que nos dá a fé, mediante a escuta da Palavra.
Primeira seção – Fundamentos. Em relação ao nascimento da teologia, é mister realçar a importância da fé e da Palavra de Deus como fundamentos teologais. A teologia nasce como fé que que busca as razões por que crê como afirma Anselmo de Cantuária: “creio para entender”. A partir da fé a pessoa se aventura na busca de compreender em que consiste a sua esperança.
Sobre o objeto de estudo da teologia, Boff distingue o objeto material e o objeto formal. Na etimologia a teologia é o estudo sobre Deus, mas o autor prefere dizer estudo de Deus e de tudo o que se refere a ele. E é um estudo científico, mas não do mesmo modo das ciências empírico-formais. A teologia é uma ciência sui generis. O objeto material – o que se estuda – da teologia é Deus e tudo o mais. O objeto formal – o aspecto sob o qual se estuda – é Deus enquanto revelado. É o que podemos apreender da economia da Trindade, pois o ser humano jamais chegará a compreender Deus. No máximo se pode compreender por meio da fé pensada aquilo que é revelado de Deus.
Um dos desafios do teólogo é justificar a razão teológica. Pois na teologia a razão é entendida a partir do prisma da fé. A teologia não se enquadra pura e simplesmente nos limites da razão moderna. Aliás esta cada vez mais tem se reduzido ao racionalismo, calculismo, instrumentalismo técnico-científico. Para o estudo da teologia e das chamadas “ciências humanas” temos a razão hermenêutica. Os horizontes da razão são alargados para além do racionalismo. A fé feita razão, ou melhor ainda, feita razões, é precisamente a ciência teológica na medida em que é crítica, sistemática e autoamplificativa. A teologia possui razões próprias porque é uma ciência sui generis assistida pela revelação.
A Palavra de Deus (Revelação) constitui o princípio formal objetivo da teologia. Faz-nos compreender que a teologia nasce da fé que se questiona, e que esta nasce da escuta da Palavra (cf. Rm 10,14). Ou seja, é no contato com a Palavra Revelada (Sagrada Escritura e Tradição) que a teologia germina e cresce. O ponto de partida da teologia, por assim dizer, é, então, a Revelação ou Palavra de Deus.
Para compreender a nossa fé, precisamos antes de qualquer coisa, aceitar que a compreensão se dá na abertura que damos ao Deus da Revelação. É o próprio Deus que age na pessoa que acolheu a Palavra e o auxilia na caminhada do dia a dia e no trabalho incansável de busca e explicação das razões que a sustentam (2Pd 3,15). A fé e a prática dos mandamentos auxiliam a razão na compreensão das verdades profundas. Como dizia Santo Agostinho, a fé é um pensar consentindo.
Além da fé-palavra, outra fonte da teologia é a fé-experiência. “Teologia não se faz só sentado, estudando ou de pé, ensinando. Teologia se faz também e em primeiro lugar de joelhos, orando” (Boff, p. 142). Nesse sentido a fé é sentida, experimentada, e a teologia é a abertura ao Espírito, que nos instiga à adoração, ao culto. A teologia se expressa, então, como sabedoria-dom (espiritual) e sabedoria-virtude (intelectual). É o espírito quem dá vida à teologia e ilumina o teólogo, mas é a razão, o esforço, o estudo, a reflexão que produzem o conteúdo, a teoria.
A fé nasce da escuta da Palavra de Deus (Rm 10,14). E já dissemos que toda a teologia nasce do desejo de dar razões à fé. A fonte da teologia é por excelência a Revelação (Palavra de Deus): fé-palavra, fé-experiência e fé-prática. Essas três expressões são mais do que discursos, são as fontes mesmas do fazer-teológico. A fé, sem a qual não há teologia verdadeira (ainda que possa haver ciência da religião) “determina” a prática e a prática “sobredetermina” a fé. Isto é, se queremos pensar uma fé coerente, devemos pensar numa fé-prática, numa fé que questiona os sinais dos tempos e dos lugares, especialmente nas circunstâncias de dor. E a teologia, à luz da fé, formula as questões que incidem na vida da comunidade de fé.
Segunda seção – Processos. Neste trecho da obra, Boff apresenta os momentos da produção teológica: ausculta da fé (auditus fiei), explicação da fé (intellectus fidei) e atualização da fé (applicactio fidei). O primeiro momento (hermenêutico) é chamado de momento positivo; o segundo (teoria) é chamado de momento especulativo; e o terceiro (prática) é chamado de momento prático. A teologia nasce da fé e esta nasce da escuta da Palavra de Deus. O primeiro momento, portanto, do discurso teológico (auditus fidei) abarca todas as pessoas de fé. Nesse sentido, todos os crentes podem compreender alguma coisa de teologia. Uma questão difícil, mas sumamente importante, para a prática teológica é a compreensão da Palavra de Deus contida das Sagradas Escrituras. E ter clareza da distinção existente entre elas. A Palavra de Deus ou Revelação é automanifestação ou autocomunicação de Deus. As Sagradas Escrituras são o registro humano e canônico da Palavra. É a Palavra que dá vida às Escrituras. A letra é morta enquanto a Palavra é viva e vivificadora. Agora, para compreender a Palavra (auditus fidei), precisamos lê-la (Sagrada Escritura e Tradição) com os seguintes critérios: disposição sincera e orante, situando o texto no contexto histórico, estabelecendo o “sentido contextual”, buscando o “sentido atual” do texto, em comunhão com a Igreja e a sua tradição, tendo Cristo como chave-mor de toda interpretação bíblica.
Sobre a Tradição, Boff chama a atenção para a diferença entre tradição e tradicionalismo. Tradição é aquilo que confere a uma pessoa ou comunidade uma identidade histórica. Tradicionalismo é um apego ao passado sem disposição para atualização e fidelidade. Quando fala da Tradição como Revelação de Deus, usa-se o T maiúsculo (tradição apostólica) para colocá-la numa ordem privilegiada em relação a outras tradições menores (tradição eclesiástica). A Tradição é um modo de como a Sagrada Escritura é interpretada.
Depois da escuta da fé (auditus fidei), o segundo momento da construção teológica é a explicação da fé (intellectus fidei): a análise, a sistematização e a criação. O teólogo faz perguntas à fé, sintetiza seu conteúdo e desenvolve novas perspectivas da fé, sempre considerando aquelas verdades comuns da fé (especialmente os dogmas), formulando teses que servem aos cientistas com o cuidado de não escandalizar os “simples na fé”.
A teologia, para exprimir as explicações da fé, precisa da linguagem, da comunicação. Como o ser humano é limitado e jamais conseguirá falar do Mistério de Deus de forma adequada (linguagem unívoca), ainda que nem sempre fale inadequadamente sobre as coisas sagradas (linguagem equívoca), podemos afirmar que o caminho mais seguro de falar de Deus é por meio da analogia (linguagem analógica) que consiste na comparação. Fala-se de Deus por analogia, com o cuidado para não cair no extremismo do univocismo (superlativismo) ou do equivocismo (impossibilidade de dizer qualquer coisa sobre o Mistério de Deus = agnosticismo).
Sobre a linguagem analógica, esta se divide em: conceitual (abstrata) e metafórica (concreta). É por meio das metáforas ou símbolos que mais facilmente a teologia se exprime e evoca os mistérios. É a linguagem mais simples, bíblica e mais acessível ao povo em geral, inclusive pastoralmente.
Sobre as metáforas (linguagem metafórica), Boff sugere alguns elementos para sua interpretação: a ponta da metáfora, seu subsolo antropológico, seu contexto cultural (especialmente o bíblico) e sugere ainda três vias de linguagem analógico-teológica: afirmação, remoção e eminência. Mas o que mais chama a atenção é a chamada “via de saída” da linguagem e que dá acesso ao silêncio orante, adorante e amoroso. É aquele momento que o teólogo se cala e adora. A comunicação acontece no silêncio, no esforço máximo de escutar Deus no silêncio do oprimido.
A teologia não é a linguagem única usada para exprimir a fé. Claro que uma linguagem sobre o Mistério que não passe pela via da fé pensada (razão teológica) é uma linguagem que serve muito mais para exprimir do que para explicar a fé. Exprimimos a nossa fé na liturgia, no canto, na música, na poesia, na dança, nas pinturas, no teatro, nas narrativas, etc. E a teologia não pode ignorar essas formas de comunicação do mistério de Deus. Deus é mistério, mas não é misterioso. Ele se revela, se comunica de mil e uma formas (no fogo, no raio ou na brisa suave).
Terceira seção – Articulações. O autor aborda a relação da teologia com a filosofia e as demais ciências. Também apresenta a problemática do pluralismo teológico que exige algumas virtudes: humildade (porque é limitada), liberdade e coragem (para dar passos novos sem deixar a essência da fé), firmeza, generosidade e compromisso. O mundo é plural, as relações são plurais e a teologia não pode deixar de considerar essas nuances.
Sobre a relação entre teologia e magistério, após uma completa abordagem do que são, o autor aponta que não existe subordinação, mas colaboração entre magistério e teologia. “Ambas estão subordinadas à Palavra e estão a serviço do Povo de Deus” (p. 482).
Na segunda parte da obra, Boff trata das questões complementares que a princípio parecem ser tão fundamentais como as questões nucleares. Antes de se aprofundar nas questões nucleares, o estudante pode fazer uma leitura muito mais leve dos capítulos que compõem essa parte.
A teologia é uma ciência sui generis que requer amor ao estudo da fé, senso do mistério e compromisso com o povo. E estudar teologia é diferente de fazer teologia. Pode-se estudar sem aquela disposição de produzir um conteúdo que favoreça a comunidade de fé. Daí que o autor insiste que o discurso teológico só tem sentido se apontar o caminho para Deus. Nesse sentido é que o teólogo, além dos livros, precisa da oração e da convivência com uma comunidade de fé para falar de Deus para o povo e falar do povo para Deus.
Ao concluir essa resenha, ressaltamos ainda, para motivar aos estudantes das ciências teológicas, que, além da grande obra Teoria do Método Teológico, Boff resumiu cada capítulo, fazendo do resumo uma outra obra (versão didática) para quem não dispõe do tempo para leituras mais demoradas. Ao adquirir essa obra de Boff, portanto, há de saber qual escolha fazer. Mas a leitura de uma obra completa faz muito bem e nos coloca na mesa de diálogo com os “grandes mestres de teologia” porque nos dá o vocabulário para interagir com mais segurança.
BOFF, Clodovis. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 2015.
Pe. Amarildo Luciano, Vice-Provincial Redentorista, comunicador e mestrando em teologia